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quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O EMPRÉSTIMO

O Empréstimo
(Este conto recebeu menção honrosa na ALAB (Acadeemia de Letras e Artes Buziana - Armação de Buzios - RJ)


O doutor Cândido ajeitou os óculos e recomendou a Inocêncio:
— Veja bem, chegando à Bahia você vende a mercadoria na feira; depois vá à igreja do Senhor do Bonfim e deposite este pacote lá onde se fazem as doações, como você sempre procede...
E apresentou um pacote grande, de papel pardo grosso, muito bem amarrado; o papel era desses usados para embalar volumes.
Inocêncio era o capataz da fazenda do doutor Cândido, rico e próspero produtor de laranja, coco, farinha, tapioca, goma, beiju, castanha e não sei quantas coisas mais que se plantam ou manufaturam na roça. A fazenda ficava em Sergipe, quase na fronteira da Bahia e a produção era vendida para atacadistas de Salvador, principalmente na feira de “Água de Meninos”. A cada semana ele lotava o caminhãozinho e rumava para a “Boa Terra” vendendo a mercadoria e prestando contas ao proprietário da gleba.
Inocêncio já exercia tal cargo por mais de vinte anos e era da inteira confiança do doutor Cândido. Por isso a cada viagem o patrão, um devoto muito piedoso, entregava-lhe um envelope, certamente uma oferta financeira ao Senhor do Bonfim, para ser depositada ao pé do santo.
Inocêncio, além de nunca negligenciar seus deveres profissionais, jamais esboçou a curiosidade de conferir o que ia dentro do envelope. Simplesmente responsabilizava-se pela encomenda e cumpria as ordens integralmente, sem questionar qualquer item. Esse era o principal motivo pelo qual o doutor o considerava um funcionário exemplar.
Carregado o caminhão e inteirado de todas as recomendações de praxe, partiu ele de madrugada para cumprir sua tarefa. Deixou a fazenda às duas da manhã e esperava chegar ao destino às cinco.
Tantas vezes havia realizado esse trabalho que a viagem já se tornara rotina. Chegou, portanto a Salvador no horário aprazado e iniciou o roteiro para entregar a mercadoria a seus principais fregueses, recolher o pagamento e, depois, ir à igreja tratar do outro assunto do qual fora encarregado: a oferenda ao Senhor do Bonfim.
A manhã já ia alta quando Inocêncio subiu as escadas que levavam ao átrio do famoso santuário. Por ser dia de semana não havia muita gente: alguns turistas munidos de máquina fotográfica retratavam o egrégio templo, comentando estridulamente as características do local, principalmente os milagres atribuídos ao célebre padroeiro, afamadíssimo em todo o Brasil pelos maravilhosos prodígios ali perpetrados.
Inocêncio entrou na nave e sentou-se em um dos bancos vazios para descansar do calor insuportável do verão baiano. Enxugou o suor abundante com um lenço e ficou aproveitando a corrente de ar que circulava na nave principal da igreja.
O pacote da encomenda repousava em seu colo! Era bem mais pesado do que os envelopes que ele transportava com frequência!
Inocêncio que, apesar de alguns esboços culturais era homem simples da roça e, da mesmíssima forma que qualquer outro representante do gênero humano, não pode reprimir uma pontinha de curiosidade a respeito do “recheio” do embrulho. Não que ele fosse desonesto, longe disso! Era apenas “normal” o nosso pobre homem.
Ficou olhando, olhando... e, cada vez mais forte, ia batendo uma vontade mórbida, um anseio enorme de bisbilhotar o conteúdo do pacotão. A mão chegava a “doer” com o desejo de espreitar o que estava ali dentro tão bem embalado e amarrado. Mas a consciência... Essa barrava a terrível onda das irreprimíveis aspirações que brotavam em seu íntimo.
Negaceia de cá, apalpa de lá... olha em volta... verifica que a igreja está meio vazia... que ninguém prestará atenção nele... Devagarzinho suspende uma ponta do papel e dá uma espiadela...
Inocêncio prendeu a respiração, conferiu uma vez, duas vezes, três vezes... Olhou bem de novo, certificou-se ainda mais uma vez... não havia qualquer dúvida: um maço de notas de cem reais apareceu pela fresta do buraquinho que fizera. Rapidamente contou cinquenta notas!... Apalpando o embrulho constatou que havia uns dez pacotes semelhantes; se todos tivessem o mesmo valor haveria ali, pelo menos, cinquenta mil reais.
Inocêncio pensou:
— O doutor é maluco... Dar essa quantia ao santo!... O padre é quem vai ficar contente... dar pulos de alegria...
Mas ele também era muito devoto do Senhor do Bonfim... e honestíssimo, diga-se de passagem. Olhava o dinheiro, olhava a imagem, olhava novamente o dinheiro... e pensava:
— Não posso ficar com essa quantia! Não seria justo... Mas também não é justo que essa dinheirama toda vá para uma igreja rica como esta. O que devo fazer? Não posso tirar o dinheiro do santo e nem deixá-lo ao Deus dará... Valei-me Nosso Senhor do Bonfim. Mande uma inspiraçãozinha...
As horas iam passando e Inocêncio continuava sentado, estatelado, sem saber o que fazer... A manhã entrou pela tarde e o capataz continuava ali, rezando para que o santo milagroso lhe desse uma pista do que fazer. E quanto mais pensava, menos tinha ideia sobre como procederia. Algumas vezes esboçou levantar-se para entregar a oferta, mas as pernas bambas o prendiam e não o deixavam realizar o intento. Pensou, pensou, pensou... Em alguns momentos as lágrimas escorriam pelo seu rosto, tal a angústia que sentia com tão inusitada situação.
A tarde já ia alta quando Inocêncio tomou uma decisão: retirou uma folha de seu caderno de anotações e escreveu:
“Meu Senhor do Bonfim: Estou muito necessitado de uma certa quantia que meu santinho querido sabe, perfeitamente, quanto é. No momento o Senhor não está precisando dela tanto quanto eu, portanto solicito, por empréstimo, o montante acertado aqui, dentro de sua igreja, o qual pagarei, tão logo possa, em prestações iguais, à partir do prazo que vou estipular em minhas orações diárias”.
Colocou o bilhete sem assinar em um envelope e depositou como sempre fazia, no local das oferendas. Depois saiu com o coração leve, mas o pacote, que era pesado, também ia bem apertado contra o peito!...
Hoje Inocêncio, rico e próspero comerciante do ramo atacadista em Salvador, deve a sua fortuna ao empréstimo contraído com o santo, o qual, diga-se de passagem, foi pago conforme o combinado em prestações iguais, sem atrasos e com os juros de praxe.
Aos domingos Inocêncio não perde uma missa sequer na “Colina Sagrada” e, no silêncio de um “tête-à-tête” com a imagem que o olha complacente do alto da cruz com seus olhos lacrimosos e sanguinolentos, ele murmura baixinho:
— Obrigado meu santinho, mas que esse segredo fique apenas entre nós dois para sempre.



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