O Empréstimo
(Este conto recebeu menção honrosa na ALAB (Acadeemia de Letras e Artes Buziana - Armação de Buzios - RJ)
O doutor Cândido ajeitou os óculos e recomendou a Inocêncio:
— Veja bem, chegando à Bahia você vende a mercadoria na feira; depois vá à igreja do Senhor do Bonfim e deposite este pacote lá onde se fazem as doações, como você sempre procede...
E apresentou um pacote grande, de papel pardo grosso, muito bem amarrado; o papel era desses usados para embalar volumes.
Inocêncio era o capataz da fazenda do doutor Cândido, rico e próspero produtor de laranja, coco, farinha, tapioca, goma, beiju, castanha e não sei quantas coisas mais que se plantam ou manufaturam na roça. A fazenda ficava em Sergipe, quase na fronteira da Bahia e a produção era vendida para atacadistas de Salvador, principalmente na feira de “Água de Meninos”. A cada semana ele lotava o caminhãozinho e rumava para a “Boa Terra” vendendo a mercadoria e prestando contas ao proprietário da gleba.
Inocêncio já exercia tal cargo por mais de vinte anos e era da inteira confiança do doutor Cândido. Por isso a cada viagem o patrão, um devoto muito piedoso, entregava-lhe um envelope, certamente uma oferta financeira ao Senhor do Bonfim, para ser depositada ao pé do santo.
Inocêncio, além de nunca negligenciar seus deveres profissionais, jamais esboçou a curiosidade de conferir o que ia dentro do envelope. Simplesmente responsabilizava-se pela encomenda e cumpria as ordens integralmente, sem questionar qualquer item. Esse era o principal motivo pelo qual o doutor o considerava um funcionário exemplar.
Carregado o caminhão e inteirado de todas as recomendações de praxe, partiu ele de madrugada para cumprir sua tarefa. Deixou a fazenda às duas da manhã e esperava chegar ao destino às cinco.
Tantas vezes havia realizado esse trabalho que a viagem já se tornara rotina. Chegou, portanto a Salvador no horário aprazado e iniciou o roteiro para entregar a mercadoria a seus principais fregueses, recolher o pagamento e, depois, ir à igreja tratar do outro assunto do qual fora encarregado: a oferenda ao Senhor do Bonfim.
A manhã já ia alta quando Inocêncio subiu as escadas que levavam ao átrio do famoso santuário. Por ser dia de semana não havia muita gente: alguns turistas munidos de máquina fotográfica retratavam o egrégio templo, comentando estridulamente as características do local, principalmente os milagres atribuídos ao célebre padroeiro, afamadíssimo em todo o Brasil pelos maravilhosos prodígios ali perpetrados.
Inocêncio entrou na nave e sentou-se em um dos bancos vazios para descansar do calor insuportável do verão baiano. Enxugou o suor abundante com um lenço e ficou aproveitando a corrente de ar que circulava na nave principal da igreja.
O pacote da encomenda repousava em seu colo! Era bem mais pesado do que os envelopes que ele transportava com frequência!
Inocêncio que, apesar de alguns esboços culturais era homem simples da roça e, da mesmíssima forma que qualquer outro representante do gênero humano, não pode reprimir uma pontinha de curiosidade a respeito do “recheio” do embrulho. Não que ele fosse desonesto, longe disso! Era apenas “normal” o nosso pobre homem.
Ficou olhando, olhando... e, cada vez mais forte, ia batendo uma vontade mórbida, um anseio enorme de bisbilhotar o conteúdo do pacotão. A mão chegava a “doer” com o desejo de espreitar o que estava ali dentro tão bem embalado e amarrado. Mas a consciência... Essa barrava a terrível onda das irreprimíveis aspirações que brotavam em seu íntimo.
Negaceia de cá, apalpa de lá... olha em volta... verifica que a igreja está meio vazia... que ninguém prestará atenção nele... Devagarzinho suspende uma ponta do papel e dá uma espiadela...
Inocêncio prendeu a respiração, conferiu uma vez, duas vezes, três vezes... Olhou bem de novo, certificou-se ainda mais uma vez... não havia qualquer dúvida: um maço de notas de cem reais apareceu pela fresta do buraquinho que fizera. Rapidamente contou cinquenta notas!... Apalpando o embrulho constatou que havia uns dez pacotes semelhantes; se todos tivessem o mesmo valor haveria ali, pelo menos, cinquenta mil reais.
Inocêncio pensou:
— O doutor é maluco... Dar essa quantia ao santo!... O padre é quem vai ficar contente... dar pulos de alegria...
Mas ele também era muito devoto do Senhor do Bonfim... e honestíssimo, diga-se de passagem. Olhava o dinheiro, olhava a imagem, olhava novamente o dinheiro... e pensava:
— Não posso ficar com essa quantia! Não seria justo... Mas também não é justo que essa dinheirama toda vá para uma igreja rica como esta. O que devo fazer? Não posso tirar o dinheiro do santo e nem deixá-lo ao Deus dará... Valei-me Nosso Senhor do Bonfim. Mande uma inspiraçãozinha...
As horas iam passando e Inocêncio continuava sentado, estatelado, sem saber o que fazer... A manhã entrou pela tarde e o capataz continuava ali, rezando para que o santo milagroso lhe desse uma pista do que fazer. E quanto mais pensava, menos tinha ideia sobre como procederia. Algumas vezes esboçou levantar-se para entregar a oferta, mas as pernas bambas o prendiam e não o deixavam realizar o intento. Pensou, pensou, pensou... Em alguns momentos as lágrimas escorriam pelo seu rosto, tal a angústia que sentia com tão inusitada situação.
A tarde já ia alta quando Inocêncio tomou uma decisão: retirou uma folha de seu caderno de anotações e escreveu:
“Meu Senhor do Bonfim: Estou muito necessitado de uma certa quantia que meu santinho querido sabe, perfeitamente, quanto é. No momento o Senhor não está precisando dela tanto quanto eu, portanto solicito, por empréstimo, o montante acertado aqui, dentro de sua igreja, o qual pagarei, tão logo possa, em prestações iguais, à partir do prazo que vou estipular em minhas orações diárias”.
Colocou o bilhete sem assinar em um envelope e depositou como sempre fazia, no local das oferendas. Depois saiu com o coração leve, mas o pacote, que era pesado, também ia bem apertado contra o peito!...
Hoje Inocêncio, rico e próspero comerciante do ramo atacadista em Salvador, deve a sua fortuna ao empréstimo contraído com o santo, o qual, diga-se de passagem, foi pago conforme o combinado em prestações iguais, sem atrasos e com os juros de praxe.
Aos domingos Inocêncio não perde uma missa sequer na “Colina Sagrada” e, no silêncio de um “tête-à-tête” com a imagem que o olha complacente do alto da cruz com seus olhos lacrimosos e sanguinolentos, ele murmura baixinho:
— Obrigado meu santinho, mas que esse segredo fique apenas entre nós dois para sempre.
CAROS LEITORES
Sejam benvindos
Aqui é o cantinho onde pretendo discutir e desenvolver o melhor conteúdo para uma perfeita comunhão de idéias que nos possibilite crescer e evoluir dentro do contexto universal.
Aqui é o cantinho onde pretendo discutir e desenvolver o melhor conteúdo para uma perfeita comunhão de idéias que nos possibilite crescer e evoluir dentro do contexto universal.
quinta-feira, 1 de agosto de 2013
quarta-feira, 31 de julho de 2013
Pedro do Rio
Pedro do Rio
I
O ruído da chuva sobre o telhado lembrava o chiado da fritura na banha quente; chuva forte, noite fria, tamborilar contínuo dos pingos... Um aguaceiro de dar medo!
Pedro abriu os olhos e esfregou-os com as costas da mão; eles ardiam sonolentos, mas ele sabia que chegara a hora de levantar. Lá fora ainda estava escuro, mas uma nesga, um tantinho de claridade coava dos vidros embaçados pelas gotículas de água que escorriam pelos caixilhos. O garoto ficou mais um pouquinho na cama aproveitando o calor da coberta. Estava muito frio!
— Pedrinho! Tá acordado menino?
Era a tia Elisa quem perguntava de seu leito no aposento contíguo. A resposta do garoto veio abafada pelo edredom que o cobria dos pés à cabeça:
— Sim tia! Já estou de pé.
A tia sabia que ele ainda não se erguera da cama, mas continuou falando:
— Vá ordenhar a cabra e traga o leite que eu vou coar o café... Já, já seu tio levanta... Você sabe que ele gosta de encontrar o café arrumado na mesa... Hoje é dia de feira, dia de sair cedo...
— Já vou tia... É que está chovendo muito! — murmurou Pedro fazendo uma careta.
— Põe aquele plástico que está perto do fogão na cabeça e vai logo — resmungou a tia. — Chuva não quebra osso!
— Mas pode dar pneumonia! — disse o menino consigo mesmo.
Pedro levantou-se trêmulo de frio, enrolou-se no oleado e saiu para cumprir a tarefa imposta pela tia. A chuva não dava trégua, a água já descia da encosta aos borbotões e a trilhazinha que levava ao Piabanha parecia outro rio. Mesmo assim Pedro chafurdou os pés na lama e entrou no telheiro que servia de garagem e abrigava as cabras como se fosse um curral; ao fundo ficava o galinheiro. Trouxe o cabrito e amarrou ao pé da mãe enquanto tirava o leite; tirou um litro e deixou o filhote mamar o restinho. Colheu também alguns ovos e voltou para a casinha. A luz do dia vinha rasgando a noite, a chuva diminuiu um pouco, mas o frio continuava intenso.
Pedro ia fazer doze anos... Era órfão e morava com os tios Elisa e Alberto, casal já entrado na idade e sem filhos. Na verdade ele pouco se lembrava dos pais. Tia Elisa possuía uma foto do casamento da irmã, amarelada pelo tempo, foto essa que repousava sobre a arca de imbuia da sala, emoldurada por um passe-partout de cartão.
Às vezes tia Elisa falava:
— Minha irmã Alice era muito bonita. Poderia ter-se casado com um homem de posição, pois o que não faltava eram os pretendentes... Mas foi apaixonar-se pelo Rodolfo que não tinha onde cair morto... Resultado: Ele foi-se embora e deixou minha irmã com a barriga na boca. Depois que você nasceu ela foi só tristeza e acabou morrendo de pneumonia.
Pedro não gostava que tia Elisa se referisse daquele modo ao pai e vertia lágrimas quando ela aludia à morte da mãe. Talvez por isso ele tivesse tanto medo da pneumonia! Todas as vezes que gripava achava que ia contrair a doença e morrer. Naqueles anos do final da década de 50 a penicilina, que só começou a ser usada como fármaco durante a grande guerra, já garantia uma boa porcentagem de cura para as infecções microbianas. Mas quando a mãe morreu, dez anos antes, no final dos anos 40 ainda era complicado e quase sempre trágico ter uma doença bacteriana.
A propriedade onde os três moravam ficava à margem da antiga União-Indústria, a estrada que ligava o Rio de Janeiro a Belo Horizonte, passando por Petrópolis, Três Rios e Juiz de fora. Hoje a nova estrada contorna por fora o trecho serrano que naquela época acompanhava as curvas do Piabanha.
Seus tios moravam perto da localidade chamada Posse, entre Petrópolis e Areal. O sítio possuía uma horta na encosta do morro que se avistava da estrada; da União-Indústria descia um caminho batido de terra, que mal dava para a velha fubica passar; havia ainda uma pontezinha de concreto, comprida embora estreita que comportava apenas um carro por vez e atravessava o rio. À frente a estradinha bifurcava-se e uma das pernas terminava no portão de madeira da propriedade do tio Alberto; dali levava até o telheiro que servia de garagem e abrigava no fundo o curral e o galinheiro. A outra perna servia aos outros colonos que também moravam na margem esquerda do rio.
À beira da estrada o casal ergueu uma barraquinha onde se vendiam os produtos da terra: verduras, legumes, ovos, frutas, mel e, quando sobrava algum leite, algumas formas de queijo de coalho preparadas pela tia Elisa. Tinham três cabras, dois cabritinhos e um bode e mais acima um chiqueirinho onde criavam o leitão para engorda que ia ser morto no Natal; o pomar, embora ficasse na encosta, era uma nesga alongada, mas não muito larga e possuía uma variedade de frutas nativas da região. Aos sábados vendiam o que podiam juntar na semana, nas feiras livres em Petrópolis.
Aliás, Pedro era petropolitano. Nascera naquela cidade serrana onde a família de sua mãe morava quando ela ainda era solteira; eram descendentes de colonos alemães que ali se estabeleceram no inicio do século XX. Alice ficou órfã de pai e mãe ainda na tenra idade. Os únicos parentes eram a irmã Elisa e seu marido. Como eles moravam longe Alice foi para um colégio interno de freiras a expensas do casal. Antes de deixar o colégio conheceu Rodolfo, o pai de Pedro que, segundo lhe contaram, era professor de ginásio. Em pouco tempo apaixonaram-se e casaram, embora contra a vontade da irmã e do cunhado.
Rodolfo também era jovem, recém-formado e, por isso, pobre. Sua família morava muito longe, na divisa de Minas com Goiás e ele vivia só. E para piorar a situação ficou desempregado! Mas era um moço inteligente e muito hábil, com uma tendência artística acentuada. Um dia viajou para o Rio de Janeiro a fim de tentar uma vaga em um colégio da capital e nunca mais voltou. Embarcou no trem e desapareceu sem dar notícias... As buscas resultaram em nada... Alice ficou sozinha e grávida. Todos o julgaram pelo pior: Na certa ele havia abandonado a esposa...
Sem ter como prover seu sustento, praticamente sem parentes — pois como dissemos contava apenas com a irmã dez anos mais velha que morava na roça — Alice viveu de alguns trabalhos de agulha, arte que aprendera com as freiras, e que conseguia arranjar graças à boa-vontade dos vizinhos. Depois do nascimento de Pedro, em 1948, a situação piorou e culminou com sua doença e morte. E então Pedro, ainda novinho, foi para a companhia dos tios.
A vida do menino nunca foi fácil... Os tios não eram ricos! Pelo contrário! Possuíam a propriedade, mas viviam com muito sacrifício; tio Alberto, vinte anos mais velho que Elisa já ultrapassara os setenta e tia Elisa também era uma cinquentona. Portanto era difícil para o casal já entrado nos anos, cuidar da chácara, da horta, da criação e ainda comercializar o produto... Isso fez com que Pedro, desde a mais tenra idade, passasse a ser uma “mão-na-roda” para a casa; ainda novinho foi treinado na ajuda aos tios, inicialmente realizando tarefinhas inerentes a um menino pequeno. Agora aos doze anos trabalhava quase tanto quanto um adulto e, se não fosse ele, Alberto e Elisa teriam muita dificuldade em produzir na lavoura para garantir a sobrevivência dos três. Tio Alberto passado dos setenta tinha problemas sérios de saúde, mas como todos os trabalhadores rurais daquela época — e de hoje em dia também — não ia ao médico, protelando com desculpas esfarrapadas quando se sentia mal, apesar dos constantes protestos da mulher.
Aquela manhã parecia a de um dia normal, mas ia mostrar-se de profundas consequências na vida daquela pequena família.
Era sábado e, como dissemos Pedro e o tio Alberto preparavam-se para ir à feira: a tia Elisa acendeu o fogo de lenha e colocou a chaleira a ferver para coar o café. Em seguida assou na chapa quente uns pães de farinha e fermento, enquanto Pedro trazia o leite e os ovos. Depois de tudo arrumado a velha senhora foi chamar o marido. A chuva voltara a cair forte...
Alberto levantou-se reclamando de falta de ar! Seu rosto mostrava um ricto de dor e queixou-se de indisposição e fadiga... entretanto lavou-se e foi para a mesa! Engoliu o café com dificuldade e em silêncio; um suor pegajoso porejava de sua testa e a respiração estava mais entrecortada e arquejante do que de costume. Ninguém ligou para aqueles sinais evidentes, mas ao erguer-se o ancião foi acometido de um mal súbito e caiu apertando o peito... infarto fulminante! O velho tio morreu antes que a esposa, Pedro ou algum vizinho pudesse chegar para prestar socorro.
II
De uma hora para outra ele apareceu na gare! Estava sujo de terra e com um tremendo ‘galo’ na cabeça! Em Piabetá conheciam-no como o “Homem da Estação ou Zé do Trem”. Já fazia bem mais do que dez anos que ele vivia na vila! No início algumas pessoas se condoeram dele e deram-lhe comida e algumas roupas e cobertores; ele viveu por algum tempo — um ou dois anos, talvez — num canto da plataforma. Não lembrava absolutamente do próprio nome ou de quem era; dizia apenas que alguém batera em sua cabeça, talvez num assalto e fora atirado do trem, sem documentos, sem dinheiro e, praticamente, nu. Um homem sem passado.
Alguém apenado de sua situação amarrou-lhe um pano na cabeça ferida que ficou ali durante bastante tempo manchado de sangue. Quase ninguém se aproximava dele ou dirigia-lhe a palavra, portanto desenvolveu uma natureza arredia e um tanto taciturna e solitária. Muito raramente alguém conversava com aquele homem e as crianças faziam ‘zoada’ como um enxame ao seu redor quando o pilhavam fora de seu “habitat”, que era a estação.
Apesar de ter uma aparência jovem, devido ao abandono e descuido com barba por fazer e as vestes rotas, semelhava um mendigo e por isso mantinha-se através da caridade pública: comia os restos que lhe traziam e vestia o que jogavam no lixo.
Sua redenção veio por intermédio de Florinda, uma jovem cujo marido afogara-se no rio da Cachoeira Grande e a deixara com um filho; ela recolheu o Zé do Trem um dia como uma boa samaritana, condoída de sua situação — aparentava estrema fraqueza e doença — e levou-o para sua casa, mesmo com a desaprovação da sociedade local. Ali cuidou dele e aos poucos lhe foi devolvendo uma qualidade de vida da qual ele já havia se esquecido.
Depois de alimentado e vestido com higiene, verificou-se que o Zé do Trem não era um ignorante qualquer: Possuía boa aparência e uma cultura bastante eclética que demonstrava uma formação educacional esmerada. Ele estava apenas adormecido e abandonado; sem ajuda e sem lembrança entregou-se ao Deus-dará e não teve forças para reagir à sua desdita. Essa metamorfose agradou bastante Florinda que era a proprietária de uma pensão fornecedora de comida caseira de boa qualidade e quartos limpos por um preço módico e bastante acessível. O Zé foi ficando por ali e, para pagar a estadia, ajudava tanto na cozinha como no atendimento aos fregueses que frequentavam o local.
Florinda gostava dele e ele por sua vez dedicava-se inteiramente a ela e ao filho agindo com sua benfeitora como alguém extremamente grato pelo favor recebido. Suas faculdades mentais foram, aos poucos, sendo restauradas e ele acabou tornando-se de grande utilidade na ajuda aos trabalhos escolares do Franklin, filho da Florinda que estava com seus dez anos, aproximados. Como era naturalmente educado e prestativo, em pouco tempo passou a ser fundamental para a família. Sua memória falhava quando se tratava de sua identidade, local e data de nascimento, pessoas com quem convivera e outros assuntos ligados à sua vida anterior. A memória vinda do aprendizado tornava-se cada vez mais eficaz e seus conhecimentos permaneciam intactos, embora ele não conseguisse lembrar como os adquirira.
Passado um tempo a coexistência entre Zé e Florinda levou-os a uma intimidade maior e começaram a dividir não apenas a casa, mas também o coração. E com certeza o amor que dedicavam um ao outro era sincero e verdadeiro. Nessa época Zé do Trem já tinha uma vida normal e raramente alguém se lembrava de seu surgimento estranho no passado. De caráter calmo, ponderado e respeitoso já não cabia mais ligá-lo à esdrúxula figura que surgira abruptamente na estação.
Como ele não possuísse documentos e nem nome, nunca puderam casar-se; mas eram felizes dentro daquilo que poderia ser considerada uma vidinha tranquila, sem muitas surpresas e nem grandes perspectivas mesmo naqueles tempos preconceituosos da década de 50. A renda da pensão era suficiente para a família de Florinda, mas Zé do Trem descobriu que possuía um dom artístico: Certo dia caiu em suas mãos um canivete; logo que se viu com aquela ferramenta sentiu imensa vontade de usá-la em um bloco de madeira. Notou imediatamente que não era a primeira vez que trabalhava daquela forma e, a partir dali passou a esculpir alguns trabalhos de aceitável beleza que ao longo do tempo foram se aperfeiçoando; Florinda os mostrou a algumas amigas que começaram a divulgá-lo no pequeno distrito; dentro em pouco eram vendidos na estação e adquiridos por muitos dos turistas que se dirigiam a Petrópolis pelo trem da Leopoldina que passando por Piabetá seguia até a Raiz da Serra ou Vila Inhomirim onde a locomotiva era trocada por outra dotada de cremalheira para subir a Serra da Estrela. Até meados dos anos 60 ainda persistiu esse serviço.
Como Piabetá era distrito de Magé, esses trabalhos chegavam muitas vezes até a sede do município onde já podiam ser encontrados em lojas que vendiam souvenires e artesanato. A verdade é que Zé do Trem passou a ficar famoso! De Magé e Piabetá suas esculturas passaram a serem expostas também em Petrópolis, comercializadas nas feiras em barracas de lembranças. Por tal motivo, nos finais de semana ele e Florinda deixavam a pensão — que a esta altura já era uma pousada — e rumavam para a bela cidade serrana onde as esculturas de Zé obtinham razoável sucesso... Portanto a qualidade de vida do casal melhorava a olhos vistos.
Contudo, quando ia a Petrópolis Zé tinha estranhas sensações! Geralmente ficava zonzo e tornava-se alheio como se estivesse em transe! Várias vezes deixou-se quedar por horas, pensativo e apático sentado em algum banco de uma pracinha, em cismas. E então os cotovelos enterrados nos joelhos e as palmas comprimindo a fronte, mostravam o impacto que a cidade causava nele. E nessa posição característica o desmemoriado agia como se estivesse fazendo algum esforço tremendo para lembrar-se de algo.
III
Depois que o tio Alberto morreu, Pedrinho e a tia precisaram trabalhar em dobro para suprir a falta do velho. Embora já idoso, tio Alberto ainda era o ponto de equilíbrio da família. Apesar de tia Elisa saber dirigir, era ele que guiava a fubica nos fins de semana para Petrópolis e também tomava conta da barraca na estrada enquanto Pedrinho cuidava da horta e dos animais. Com a morte do esposo Elisa passou a ter que ir para a barraca da estrada e Pedro a acumular o preparo do almoço em suas tarefas diárias.
Nos fins de semana tia Elisa, apesar das barbeiragens, levava a fubica — uma pequena caminhonete com uma carroceria de madeira — cheia de mercadoria para Petrópolis onde armavam a barraca na feira. Saiam de madrugada no sábado instalando-se “do outro lado da linha do trem” na pracinha onde há uma bifurcação para os bairros do Caxambu e do Quissamã. Era uma feira razoavelmente grande, perto do Centro e da estação de Estrada de Ferro.
Naquele ano de 1960, Petrópolis era uma cidade progressista e desenvolvida que agregava uma população onde havia muitos descendentes de imigrantes alemães. Além disso, também era um local muito afamado para veraneio e atraía um grande número de turistas em busca de descanso e laser. Já naquele tempo as famosas malharias que no futuro tornariam a cidade famosa pelas confecções, começavam a se espalhar pela Rua Tereza até o Alto da Serra.
Em um destes sábados Tia Elisa e Pedrinho instalaram sua barraquinha e arranjaram a mercadoria da melhor maneira para atrair a freguesia. Tudo aquilo que o sitio produzia estava ali bem arrumadinho; verduras, legumes, frutas, mel, queijo, ovos... tudo fresquinho e de primeira categoria. Pedrinho desdobrava-se anunciando a mercadoria aos gritos enquanto a tia vendia e passava o troco e, conforme a manhã ia avançando os produtos iam diminuindo, num excelente ritmo que prenunciava um final rápido e feliz. De fato, antes da hora do almoço já tinham vendido tudo e se preparavam para a refeição substancial que tia Elisa preparara para os dois: duas generosas marmitas com arroz, feijão, macarrão, ovo e um bom pedaço de lombo assado. Sentados no banco da frente da caminhonete devoravam os quitutes com o apetite de quem comera sua última refeição ainda de madrugada.
Pedrinho aproveitou o bom humor da tia devido às vendas fartas e, com a voz um pouco trêmula pediu:
— Tia Elisa, eu sei que a senhora não gosta muito, mas me fala do papai... Agora tia, diga alguma coisa boa dele... Eu gostaria tanto!
Elisa sentiu um nó na garganta, mas disfarçando retrucou:
— Por quê? Você acha que eu não gostava de seu pai?
— Pelo menos você sempre diz que ele não prestava! Que abandonou minha mãe... E aí eu fico triste! Não conheci meu pai, mas gostaria que as pessoas falassem bem dele...
— Sabe tia — continuou o menino —, sinto falta de ter um pai e uma mãe. Quando eu estou sem trabalhar, sozinho, penso neles... e aí meu coração chega a arder de tão triste... Quase que eu já gastei o retrato da sala de tanto olhar para ele! Eu nunca fui ao colégio, não sei ler... Gostaria de saber! Desde que eu era pequenino sempre trabalhei sem reclamar de nada, mesmo quando eu estava doente... Puxa tia, fala bem do meu pai... só um pouquinho!...
A tia engasgou com o naco de carne assada. Tossiu muito! Os soluços de comoção se misturaram à tosse pelo engasgo. Embaraçada disfarçou o que pode e refutou as lágrimas ao pedaço de carne que tomara o caminho errado. Levou algum tempo para se recompor dando tapas no próprio peito como para desentalar... Depois falou meio sem jeito:
— Ora menino, eu até gostava do seu pai sim, mas o que ele fez à minha irmã foi inadmissível, não se pode perdoar... Ah, eu queria tanto te dar essa alegria! Mas não posso!
Tia Elisa não aguentou e deixou o dique das lágrimas se romper de vez. Pedrinho também chorou e abraçou a tia. Entre soluços ponderou:
— Mas tia, suponha que aconteceu alguma coisa... que ele não pode voltar... Pode até ter morrido!
— Não Pedro! Ele poderia ter avisado e se ele tivesse morrido alguém traria a notícia em casa — afirmou Elisa abanando a cabeça. — Ele não quis assumir a responsabilidade... Estava desempregado... foi um fraco! Abandonou minha irmã e você!
Pedrinho agora chorava bastante:
— Puxa, eu queria tanto!... Eu rezo todos os dias para que Deus me dê uma resposta que me faça feliz! Todos dizem que minha mãe foi uma santa e eu gosto; mas todos também dizem que meu pai era um diabo e isso eu não gosto. Ora tia, apesar de tudo eu não sou um menino alegre ou feliz. Não brinco, não passeio, não tenho amigos... Mas não reclamaria da nada disso se eu tivesse pai e mãe!
Levantando-se caminhou devagar para a pracinha onde, sentado em um banco, passou a ruminar sua tristeza quedando-se de cabeça enterrada nas mãos e chorando baixinho. Elisa deixou-o sozinho! Sabia que ele precisava encontrar-se consigo mesmo.
IV
Zé do Trem estava tonto com a balbúrdia da feira. Toda vez que ia ali tinha desses estranhos ataques que deixavam a sua cabeça tão confusa. Sentou-se um pouco para acalmar seu espírito agitado por ondas que subiam causando arrepio em seu corpo. Era uma sensação desagradável como se alguém estivesse arrancando suas entranhas.
Florinda aproximou-se e perguntou:
— Está sentindo-te mal, Zé? Queres ir embora?
— Não minha rainha, eu estou apenas um pouco tonto! Prefiro ficar um pouco só!
Era assim que ele a tratava: Minha rainha!
Florinda voltou para suas vendas de artesanato e deixou o “marido” sozinho com suas cismas. Zé ficou ali sentado tentando espremer do crânio aquelas recordações que nunca vinham. Durante algum tempo ele deixou seu pensamento vagar. Era uma sensação estranhíssima. Um vazio que não se preenchia nunca. E isso lhe dava muita angústia. Havia momentos em que subia uma onda como se fosse recordar-se de sua vida passada, mas a sensação morria trazendo novamente o vazio. E aí vinha uma dor de cabeça fortíssima que lhe dava desespero e agonia.
Engoliu dois comprimidos analgésicos, fincou os cotovelos nos joelhos na sua posição característica e deixou-se ficar quietinho esperando passar aquele surto.
Depois de alguns minutos ergueu a cabeça; relanceando a vista pela feira fixou-a no banco ao lado onde um menino chorava baixinho. Sem saber por que, sentiu pena daquele garoto que parecia tão desprotegido e sentiu um impulso e uma vontade enorme de consolá-lo afagando seus cabelos. Aproximando-se sentou no mesmo banco e com voz doce e consoladora perguntou:
— Como é que um menino tão jovem e tão belo como tu pode estar tão triste. Talvez se me contares eu possa ajudar-te...
Sem levantar a cabeça Pedro, pois era ele, respondeu:
— Tenho saudades do meu pai e da minha mãe. Nunca os conheci, mas queria tê-los ao meu lado. Gostaria que todos amassem meu pai, mas minha tia Elisa diz que ele agiu muito mal com minha mãe e abandonou-a grávida. Isso me machuca por dentro, não posso explicar... O senhor acredita em amor mesmo sem conhecer a pessoa?
O menino levantou os olhos... Ao se deparar com o rosto de Zé tomou um susto; era o rosto que fixara tantas vezes no retrato da sala... Um pouco mais velho, mas certamente o mesmo rosto:
— Acho que lhe conheço... quem é o senhor?
Zé preso a uma estranha comoção ficou mudo. Nesse instante tia Elisa aproximou-se e chamou:
— Pedro...
Ao olhar para o rosto do homem que estava sentado ao lado de seu sobrinho soltou um grito:
— Rodolfo?... Meu Deus! — E virando-se para o menino abraçou-o — Pedro! Oh, Céus! O que você faz aqui Rodolfo?...
Nesse instante Zé do Trem virou-se estatelado para Elisa. Sem um gemido sequer foi pendendo a cabeça e revirando os olhos... Em seguida caiu sem sentidos no solo.
O ajuntamento que logo se fez atraiu a atenção de Florinda que estava perto, na barraca. Imediatamente aproximou-se e quando viu o companheiro escarrapachado no chão ficou desesperada.
— Zé acorda, o que aconteceu, fala comigo... Pelo amor de Deus, Zé... fala comigo.
Enquanto tentava reanimá-lo as lágrimas rolavam por sua face. Ainda sem saber o que havia acontecido olhou indagadoramente para Elisa que também se curvara sobre o homem e inquiriu:
— O que aconteceu, meu Deus? Porque ele não responde?
— Esse é meu cunhado Rodolfo — explicou Elisa. — E aquele é o filho dele — disse apontando Pedro.
— Não. — afirmou Florinda. Este é o meu Zé do Trem. Moramos em Piabetá. Ele perdeu a memória, mas vive comigo há dez anos. Por favor gente, chama uma ambulância... um táxi... Precisamos levá-lo ao hospital, ele está muito mal...
Um homem aproximou-se:
— Sou médico, deixe-me examiná-lo!
Após rápido, porém minucioso exame, o medico declarou:
— Todos os sinais vitais correspondem, mas está em profundo estado de choque. Precisamos levá-lo imediatamente ao hospital. Meu carro está estacionado aqui perto...
Com cuidado ergueram e carregaram Zé do Trem colocando-o no veículo.
V
Como são interessantes os caminhos do Cósmico, do Todo... A lei da atração, explicada hoje em dia pela física quântica, move parâmetros incompreensíveis para nós, simples e pequeninos humanos que nos agitamos neste mundo de dores tal e qual amebas numa poça de água. Planeta de aprendizado, de expiação, mas ao mesmo tempo de maravilhas, de milagres da vida... Quem poderá se jactar de ser absoluto em seus conhecimentos, quando Deus, este Espírito que paira sobre o Universo, esta Vontade Fundamental que cria e destrói um milhão de mundos em um piscar de olhos, prepara em cada curva do caminho surpresas tão inesperadas?...
Acaso? Coincidência? Não! Não existem acasos, nem coincidências... Tudo no Universo se encaixa com uma poderosa razão de ser. Já dizia Einstein, um dos maiores expoentes do século XX: “Deus não joga dados!” Ah, Planeta Terra! Como somos ainda tão atrasados que não percebemos as grandes dádivas que nos são mostradas todos os dias, enquanto nos chafurdamos em misérias... É só olharmos a beleza da natureza para sentirmos a grandeza do Supremo Criador.
Ah, como são belos os riachos que serpeiam pelas matas; e as águas que gastam as pedras polindo-as, alisando-as com sua carícia eterna, dia após dias, ano após ano...
Entretanto o homem se apega ao ódio!
Ah! Como é suave o murmúrio das cascatas saltando de pedra em pedra para depois espraiar-se nas espumas que bailam nas águas tranquilas dos lagos.
Porém o homem se destrói em guerras!
Como são frescas as margens onde rochas arredondadas e cobertas de musgos emolduram uma flora rica que cresce na umidade perene à sombra da floresta. Flores rasteirinhas que colorem as trilhas dos caminhos e, no amanhecer quando o lusco-fusco da aurora ilumina a pequena pérola de orvalho que tremeluz na pétala, uma miríade de cores explode na difração do tênue raio de sol que a atravessa. E esse raio se desmancha num espectro encantado de infinita beleza...
E o homem ainda se entrega às drogas!
Na sala de espera do hospital Santa Tereza estavam reunidos Florinda, Pedro e tia Elisa. Zé já estava no hospital há três dias. Na noite anterior dera sinais de recuperação, por isso todos aguardavam o médico chegar com notícias alvissareiras.
Florinda contara a Elisa todos os percalços pelo qual Zé do Trem passara, mas não sabia explicar como ele fora parar daquela forma em Piabetá. Elisa, por sua vez explicou que Rodolfo era viúvo de sua irmã Alice e que desaparecera deixando-a grávida. Pedro era o filho de Rodolfo. Todos imaginaram que ele havia fugido e sequer passava por suas cabeças que ele pudesse estar tão próximo.
Finalmente o médico chegou. Eles se acercaram para ouvir o que o facultativo tinha a dizer; o doutor Francisco foi econômico nas palavras, mas sintetizou de forma prática os fatos explicando:
— Vai sobreviver. Foi um choque quando recobrou a memória repentinamente! Agora já se lembra do passado, mas está muito fraco. Apesar disso ele quer falar com vocês. Sejam breves e cuidadosos, sem questioná-lo. Deixem que ele fale. Lembrem-se que ele sofreu um choque fortíssimo.
Em silêncio entraram no quarto onde o paciente repousava. Por sugestão do médico deixaram Pedro entrar também. Zé do Trem estava com os olhos semicerrados, mas abriu-os logo que todos entraram. Notando a ansiedade que tomava conta do paciente a enfermeira, uma irmã de caridade, procurou acalmá-lo.
— Fique calmo senhor, nada de precipitação.
Depois se voltando para os visitantes esclareceu:
— Vou deixá-los um pouquinho a sós com ele. Está sob o efeito de sedativos, mas sua faculdade mental está preservada dentro da medida do possível. Cuidado para não cansá-lo.
Florinda tomou as mãos do companheiro entre as suas. Zé relanceou a vista pelos três. Depois se fixou em Elisa:
— Lembrei-me de tudo — disse com voz sumida. Eu não abandonei Alice, juro. Eu a amava e também ao meu filho que ia nascer. Foi uma fatalidade da qual fui culpado involuntariamente.
Tocou as mãos de Pedro e murmurou:
— Perdão meu filho — e beijou-as comovido.
Parou um momento e lágrimas escorreram de seus olhos, Pedro segurou-se muito para não chorar desesperadamente, mas derramou abundantes lágrimas, tanto de emoção como de júbilo.
— Naquele dia o trem estava vazio — continuou o doente. — Havia pouca gente no vagão! Depois que desceu a serra dois homens aproximaram-se de minha poltrona. Um deles tinha a mão direita sob o paletó como se portasse uma arma e ordenou que eu o acompanhasse. Estávamos no último carro e ele me fez ir até a plataforma; lá me exigiu a carteira.
Parou para tomar fôlego e descansar um pouco. Após um instante continuou:
— Entreguei-lhes a carteira com os documentos. O dinheiro era muito pouco, apenas o suficiente para a volta. Ficaram possessos... jogaram a carteira na mata e um deles sacou a arma e me ameaçou dizendo que eu deveria me sentir envergonhado por ser um Zé Ninguém sem um tostão no bolso. O trem já vinha chegando à estação e eles me golpearam com o cano do revolver e me atiraram nos trilhos. Daí para frente minhas lembranças se esvaíram; fiquei sem saber o que fazer quem eu era... Só me lembro da estação. Florinda — olhou carinhosamente para a mulher — me salvou e deu-me uma nova vida...
Novamente as lágrimas escorreram e ele ficou em silêncio. Depois de um bom lapso retomou a narrativa:
— Sentia sensações estranhas quando vinha a Petrópolis e, particularmente no sábado, estava muito agitado, pressentindo que alguma coisa iria acontecer. A visão do menino chorando e quando ele disse que me conhecia despertou-me impressões estranhas. Foi quando avistei minha cunhada chamando-me pelo nome...
Parou novamente. As lágrimas corriam pela face de todos. Depois que os soluços se acalmaram Zé prosseguiu:
— Senti um baque e perdi a consciência. Acordei hoje aqui e lembrei-me de tudo...
VI
A última vez que tive contato com a família foi em meados de 1964. As notícias? Já as vou dar:
Retomar uma vida que foi interrompida durante doze anos não foi fácil. No início todos tiveram que se ajustar ao novo padrão exigido.
Zé do Trem, depois que descobriu que se chamava Rodolfo casou-se com a Florinda e continua morando no lugar que o ajudou a encontrar-se novamente.
Elisa vendeu a propriedade de Posse e foi morar com Pedrinho em Piabetá — Ele não abriu mão de ficar perto do pai. O menino passou a frequentar a escola onde se destacou por sua aguda inteligência. Aprendeu a ler e tem vontade de se formar em medicina. Ele também ganhou um irmão mais novo, o Franklin, filho da Florinda, que quando vi pela última vez estava grávida. A família está aumentando!
Com o dinheiro da venda do sítio Elisa comprou uma chácara onde ela e Pedro — que já estava com dezesseis anos — plantam verduras e legumes e criam cabras e galinhas, continuando a fazer aquilo que sabem fazer muito bem, com uma vantagem: a Florinda consome quase toda a produção no seu restaurante, que cada vez faz mais sucesso.
O Zé, agora Rodolfo, continua fabricando o seu artesanato que é muito procurado e, nas horas vagas, dá aulas no ginásio de Magé. Já o convidaram para entrar na política, mas ele, ajuizado e sério, não aceitou.
Como se pode observar, esta é uma história de final feliz. Talvez seja verdadeira, talvez imaginação... Entretanto de uma coisa ela pode se gabar: Traz uma mensagem de superação e de reconhecimento... Talvez seja pela falta desse tipo de mensagem que a humanidade hoje se ressente tanto. Não temos o vilão, personagem tão a gosto das tramas atuais, mas, sem dúvida, sobra o amor ao próximo na sua forma mais cristã: a ajuda e a solidariedade humanas que transformam criaturas semimortas e abandonadas em seres humanos prontos a viver a sua nova experiência com denodo e fé.
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